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Plano de ação de gênero para 2026–2034, no segundo rascunho, reconhece desigualdades e cita alguns grupos vulneráveis, mas ainda trata raça como detalhe

Autora: Flávia Santos

Às três da manhã, um novo documento foi inserido no site da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima: o segundo rascunho do  Plano de Ação de Gênero 2026-2034, que vai guiar como a justiça de gênero deve aparecer em todas as decisões climáticas da próxima década. Ele chega no último dia de COP30, após críticas  – e pressão popular e política – ao primeiro rascunho sugerido no dia 18, que achava que o termo  “mulheres” contemplava todas as realidades, sem especificar  raça, classe e território.  

O segundo rascunho, que antecede o texto final, à primeira vista, parece responder às críticas. O texto inclui um parágrafo sobre impactos diferenciados nas vidas de algumas mulheres – indígenas, rurais, migrantes, com deficiência – e consolida o termo ascendência africana no preâmbulo, sem os colchetes usados na versão anterior. 

Na prática, contudo, a necessidade de pressão política para o reconhecimento do básico, demonstra como os países não estão preparados para sair da camada do discurso e transformá-lo em metas reais. 

O que o documento traz de concreto

Entre os 14 parágrafos, o Plano de Ação que já caminha para o texto final, afirma que os impactos da crise climática e as oportunidades “não são iguais para todas as mulheres”. O plano cita, nominalmente, mulheres indígenas, mulheres de comunidades locais, migrantes, mulheres com deficiência, agricultoras familiares e mulheres de áreas rurais e remotas.

Ainda assim, o documento não amarra esse reconhecimento a nenhuma obrigação concreta. Não define metas mínimas de participação, não prevê recursos específicos para as mulheres mencionadas, nem diz que o financiamento climático precisa ajudar a corrigir as desigualdades raciais e territoriais citadas no plano.

“A gente precisa trazer para dentro do sistema do clima todos os consensos que a humanidade já alcançou: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os acordos sobre igualdade racial e de gênero, tudo isso tem que caber aqui dentro”, defendeu Jurema Werneck, médica, feminista negra e diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, durante a COP30.

Jurema ressaltou que, como mulher negra, fica profundamente chateada com qualquer retrocesso. “Se o sistema do clima andar para trás em relação ao que a humanidade já construiu em direitos humanos, igualdade e dignidade, alguma coisa está muito errada.”

O documento também traz muitas referências e notas de outros materiais que reforçam a disparidade de gênero, avaliando  órgãos Constitutivos da Convenção do Clima (UNFCCC) que têm (ou não) incorporado a perspectiva de gênero em seus trabalhos ou estudos que confirmam que mulheres ainda são minoria nas delegações. Além disso, distribui agradecimentos às instituições que organizaram workshops técnicos e define um calendário para revisão e implementação do plano. 

Por fim, o texto reconhece que o plano pode servir como ferramenta para orientar a ação climática, mas reforça que os caminhos serão “determinados nacionalmente”. Em outras palavras, cada governo decide o quanto vai, de fato, levar essas diretrizes a sério. Mesmo em sua segunda versão, o rascunho soa decepcionante.

Muito processo, pouca obrigação

O plano de gênero foi elaborado em meio à  resistência aberta de países que tentam apagar até a palavra “gênero” das decisões, como na COP29 . O documento torna-se frágil, por não ser um  instrumento robusto que vincula justiça climática à redistribuição de poder, renda e reparação. A sensação é de um texto cheio de processos, oficinas, relatórios e convites, mas com pouca disposição de mexer nas estruturas que mantêm as mesmas pessoas vulneráveis de sempre.

Um relatório da organização Habitat para a Humanidade Brasil, apresentado na COP30, mostra que 66,6% das pessoas que vivem em áreas de risco no Brasil são negras – e as famílias mais atingidas pelos desastres climáticos são justamente as chefiadas por mulheres negras. 

Num país como o Brasil, que sedia a COP30, com 56,1% da população que  se declara preta ou parda, segundo o IBGE 2022, essa ausência de um recorte explícito de raça e de menção direta às mulheres negras pesa ainda mais. O texto fala em “elevar a ambição climática” e “criar empregos decentes” numa transição justa, mas não diz nada sobre quem tem ficado de fora desses empregos, nem sobre o peso histórico do racismo na distribuição dos danos climáticos e dos benefícios de qualquer transição verde. 

Estela Bezerra, secretária nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Ministério das Mulheres, afirma também que tratar raça como detalhe nos textos climáticos internacionais é ignorar como a desigualdade é organizada no Brasil. “Se o impacto climático atinge primeiro as populações empobrecidas, ribeirinhas, de favelas, que não têm infraestrutura nem tecnologia para amenizar os danos, a gente está falando majoritariamente de pessoas negras e de mulheres.”

A comparação entre o primeiro e o segundo rascunho mostra bem essa ambivalência. Um dos trechos mais fortes das versões iniciais convidava a CMA – Conference of the Parties serving as the Meeting of the Parties to the Paris Agreement, o órgão que reúne os países do Acordo de Paris, a considerar e adotar o programa de trabalho de Lima reforçado sobre gênero e o plano de ação. Se esse convite tivesse sobrevivido, o plano de gênero ganharia outro peso: viraria referência formal também para a implementação do Acordo de Paris, não só da Convenção do Clima em geral. Na segunda versão, esse parágrafo simplesmente desapareceu.

Pressão popular 

Quando o primeiro rascunho foi publicado, o Geledés – Instituto da Mulher Negra, que atua como organização observadora nas negociações climáticas da ONU, denunciou que União Europeia, Reino Unido e Austrália travaram justamente o trecho que garantiria reconhecimento à população afrodescendente no Plano de Ação de Gênero da COP30.

“Fica a pergunta inevitável: por que União Europeia, Reino Unido e Austrália — tão vocais sobre direitos humanos e justiça climática — se recusam justamente a reconhecer aqueles que mais sofrem com o racismo ambiental, a desigualdade de gênero e os impactos diretos da crise climática?”, perguntou a instituição. 

Segundo Ester Sena, assessora de Clima e Juventude do Geledés, o argumento desses países é de que bastaria reconhecer “todas as mulheres” como as mais afetadas pelos impactos climáticos. “O problema é que isso cria a falsa impressão de que todas as mulheres são afetadas da mesma forma – e isso simplesmente não corresponde à realidade”, afirma. 

Na ocasião, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou em entrevista AzMina que Brasil e Colômbia atuavam  em conjunto para tentar garantir que raça entrasse no texto final. Segundo ela, havia impasses sobre a terminologia a ser usada, como a palavra “afrodescendente” – usada para falar de descendentes de africanos que foram escravizados e levados para outros continentes. Representantes de países africanos apontam que essa palavra não descreve bem a realidade de quem vive no continente e que se identificam como africanos. 

O que é o plano de ação de gênero?

Desde 2014, com o Programa de Trabalho de Lima sobre Gênero, a Convenção do Clima assumiu que precisa integrar a perspectiva de gênero em toda a política climática. 

De lá para cá, essa agenda foi sendo construída aos poucos: em 2017 veio o primeiro Gender Action Plan (Plano de Ação de Gênero), criado para tirar essa promessa do discurso e colocá-la em ações concretas. Em 2019, o Programa de Lima ganhou uma versão “reforçada” e, em 2023, na COP29, os países decidiram prorrogar o programa por mais dez anos e encomendar um novo plano de ação, que seria adotado agora, em Belém, na COP30. Por isso, havia muita expectativa, especialmente no Brasil, sobre como a questão de gênero seria tratada na conferência.

A briga por cada colchete

Enquanto engatinhamos para tirar a agenda de gênero do papel, os direitos já garantidos – como o plano de ação de gênero – são constantemente ameaçados. Na COP29, uma aliança conservadora envolvendo países como Arábia Saudita, Irã, Rússia, Egito e o Vaticano tentou esvaziar a linguagem de gênero e, em especial, as referências à diversidade de mulheres e à interseccionalidade. Entre os trechos atacados e cortados estavam as menções à igualdade de gênero, à diversidade de mulheres e à interseccionalidade.

Sob pressão de países latino-americanos e europeus, parte dessa linguagem foi mantida, mas o recado ficou claro: a pauta de gênero continua sob ataque nas negociações climáticas. A situação é mais difícil quando incluímos a raça na discussão.

Quando as negociações travam – e elas sempre travam – a presidência da COP30 recorre a um mecanismo político conhecido como pares ministeriais: dois ministros, de países diferentes, são escolhidos para “apadrinhar” cada tema e tentar costurar acordos na reta final. Em carta enviada às delegações, o presidente da COP30, André Corrêa do Lago, designou Chile e Suécia como parceria ministerial para o gênero, com a tarefa de ajudar a fechar o texto do novo plano de ação de gênero.

Para Ester Sena, o que se vê em Belém repete um padrão histórico de apagamento. “Os direitos das populações indígenas e afrodescendentes nunca estão naturalmente garantidos em nenhum espaço. Só com pressão, articulação e estratégia conseguimos garantir reconhecimento aos nossos corpos e territórios”, afirma.

“A luta continua. O sistema do clima não termina na COP30, então a nossa luta também não termina na COP30.” Jurema Werneck

Até a publicação desta reportagem, o texto final do Plano de Ação de Gênero ainda estava em negociação. Enquanto ele não é fechado, AzMina segue de olho no que entra, no que sai e no que fica entre colchetes. 

Esta reportagem foi produzida por Azmina, por meio da Cobertura Colaborativa Socioambiental da COP 30. Leia a reportagem original em: https://azmina.com.br/reportagens/quando-raca-e-detalhe-o-plano-da-cop30-que-apaga-mulheres-negras/?swcfpc=1 

 

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