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Propostas partem de premissas falsas sobre fome, produção de alimentos, uso da terra e transição rumo a sistemas alimentares saudáveis para sugerir adoção do agro brasileiro no resto do mundo.

Autores: João Peres, Tatiana Merlino e Bruna Bronoski

Nenhuma menção a agrotóxicos ou defensivos agrícolas. Preocupação com a saúde do solo, mas não com a saúde humana. E muitas informações incompletas ou distorcidas. Esse é o resumo do documento que as entidades de representação do agro brasileiro enviaram ao presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago. 

“Ninguém deveria sequer aceitar discutir: filhos e netos sem paz? Absurdo!”, resume Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura do governo Lula entre 2003 e 2007, coordenador da elaboração do documento e enviado especial da agricultura na COP 30. 

O relatório “Agricultura tropical sustentável. Cultivando soluções para alimentos, energia e clima” é assinado pelo Fórum Brasileiro da Agricultura Tropical, uma coalizão que reúne algumas das entidades mais representativas do lobby do setor, como o Instituto Pensar Agropecuária (IPA) e a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).

Em resumo, o documento se baseia em duas premissas falsas. A primeira delas é bastante antiga na formulação do setor: o agro resolve o problema da fome no mundo. O próprio texto desmente esse princípio, admitindo que a questão existe “não por escassez, mas por distribuição desigual, desperdício sistemático e pela intensificação dos eventos climáticos”. A segunda é recente, vendendo a ideia de que a produção em larga escala já completou uma transição de sucesso para uma produção plenamente sustentável. 

O documento não chega a representar uma novidade a quem está acostumado ao discurso corrente de que o agro sustenta o Brasil e alimenta o mundo. Ainda assim, o fato de ser apresentado numa conferência global das Nações Unidas sobre clima traz uma contradição evidente. Ainda assim, a ênfase no uso da expressão “ciência” chama atenção, e a propaganda de que o setor sempre foi altamente sustentável. 

Se a primeira página fala em paz, a última preconiza estabilidade e um casamento dos sonhos entre conhecimentos e práticas. “Ao unir produtividade, inclusão social e ação climática, a agricultura tropical se consolida como pilar da estabilidade global, garantindo alimento acessível, energia renovável e resiliência climática. Adaptar a agropecuária a esse novo contexto vai além de resistir a eventos extremos. Significa transformar sistemas produtivos, regenerar territórios e renovar a relação com a natureza. Essa transição depende da integração entre ciência, saberes locais e políticas públicas — do solo à paisagem e da genética à biodiversidade.”

Sem bodes na sala

Apesar de o Brasil ser o maior consumidor mundial de agrotóxicos, essa questão não aparece uma mísera vez no documento. Em alguns momentos, são mencionados os bioinsumos, que são produtos derivados de microrganismos, extratos de plantas e outras substâncias biológicas alternativas aos agrotóxicos, aos fertilizantes químicos e a outros insumos agropecuários sintéticos. O que o documento faz é enunciar a solução para um problema que não existe. Por que os bioinsumos são necessários? Não se sabe. 

Outra ausência notável do documento é a discussão sobre saúde humana. Se os agrotóxicos são ignorados, obviamente os problemas causados por eles também o são, o que constitui um silêncio ensurdecedor num momento em que se acumulam evidências de populações afetadas por agrotóxicos e suspeitas crescentes sobre a relação com a explosão de casos de câncer. 

Mas, para além desse dano direto e visível, o documento também ignora a necessidade de produção de alimentos saudáveis. Não deixa de ser emblemático que uma síntese das soluções para a transição ao que seria um sistema alimentar sustentável e saudável ignore a existência de ultraprocessados e a preocupação que o assunto tem despertado na comunidade científica. Nesse sentido, ao menos o Fórum Brasileiro de Agricultura Tropical teve o bom senso de não se colocar como porta-voz da agroecologia, palavra que não aparece no texto. 

Premissas falsas

O documento ressuscita uma velha promessa da produção em larga escala: paz. Esse é o mote que anima todo o prefácio de Roberto Rodrigues. Como ele mesmo preconiza, quem poderia se opor à paz? E o caminho para isso, diz ele, é obrigatoriamente a exportação do modelo brasileiro de agricultura a todo e qualquer cantinho tropical do planeta. 

“Este horizonte terá sua maior plenitude no cinturão tropical do planeta. América Latina, África subsaariana e parte da Ásia são as regiões onde existe terra para aumentar a área plantada e onde o padrão tecnológico ainda é baixo. Nesta grande faixa territorial é que vai acontecer o maior processo de produção agropecuária tropical sustentável que evitará guerras fratricidas de qualquer ordem”, propõe.  

A produção de paz foi um elemento importante do discurso da Revolução Verde, uma ofensiva criada nos Estados Unidos na segunda metade do século passado. Em linhas gerais, a proposta é produzir em larga escala, com baixa diversidade e com uso intensivo de venenos e fertilizantes. Essa ideia se baseia na teoria de Thomas Malthus, segundo a qual não haveria planeta para dar conta da humanidade. A interpretação dessa teoria no campo da agricultura é que apenas uma produção em larga escala poderia garantir a sobrevivência e a paz no planeta. 

O problema é que, passadas sete décadas, a fome segue existindo, e a isso se somou uma escalada na incidência de doenças crônicas, como câncer, diabetes e doenças cardiovasculares em decorrência do consumo de produtos nocivos. Mais recentemente, também se tornou evidente como a agricultura tem uma participação relevante na criação do colapso climático. 

Mas, para Rodrigues, precisamos de mais Revolução Verde: “Na África Subsaariana, a ausência de instituições de pesquisa e de políticas estruturadas manteve sistemas extensivos de baixa produtividade, agravados pela erosão e pela perda de fertilidade dos solos. O limitado alcance da Revolução Verde na região é evidenciado pela estagnação da produtividade total dos fatores agrícolas desde a década de 1960, em contraste com a evolução bem acima da média global observada na América Latina e na Ásia — com o Brasil à frente desse processo.”

Distorções

O relatório traz uma série de informações falsas ou distorcidas. 

“Tudo o que foi aqui desenvolvido nos últimos 50 anos – de um país que importava 30% da alimentação consumida internamente nos anos 70 do século passado para um país que exporta produtos agrícolas para mais de 190 outros – deve ser mostrado, explicado e ter sua aplicação explicitada para o cinturão tropical.”

Essa é uma informação falsa. Nós vasculhamos todos os documentos públicos disponíveis sobre os anos 60 e 70, e não há nada que permita dizer que o Brasil era um grande importador de alimentos. 

“Até meados do século XX, a agricultura brasileira ainda carregava as marcas de sua herança colonial. Sistemas extensivos, baixa produtividade, desigualdades regionais profundas e forte dependência de importações de insumos e alimentos básicos definiam o setor. O Cerrado, com seus 204 milhões de hectares, era considerado impróprio para o cultivo devido à acidez dos solos, ao excesso de alumínio e à baixa fertilidade natural. A rápida urbanização dos anos 1960 ampliou a demanda por alimentos, levando o país a recorrer com frequência ao mercado externo para suprir necessidades básicas.”

Esse trecho traz uma série de imprecisões. A primeira questão é que o Brasil continua dependendo fortemente de insumos importados: o país não tem uma produção suficiente de fertilizantes, nem mesmo de todos os alimentos necessários de Norte a Sul do país, como o trigo e o milho. A segunda questão é que a rápida urbanização dos anos 1960 se explica, em parte, pela expulsão de camponeses para o avanço do latifúndio. Ou seja, a demanda urbana por produção de alimentos foi parcialmente criada pelo modelo que o documento preconiza. 

Por fim, não há ruptura entre o agro atual e o passado colonial. Dito de outra forma, o agro é herdeiro da estrutura colonial de concentração de terras, grilagem, violência contra camponeses e povos tradicionais e privilégios nas políticas de crédito e de construção de infraestrutura. O latifúndio é produtivo, mas também fértil em problemas. 

Insustentável

O acúmulo de informações distorcidas sobre sustentabilidade é transversal ao documento. Passando à margem do fato de que a quase totalidade do desmatamento no Brasil é produzida pelo agro, o texto tenta criar uma narrativa plena de sucesso, dizendo que o setor tem sido fundamental para poupar as florestas nacionais. 

Se é omisso em relação aos ultraprocessados, o documento é farto na defesa da outra grande produção direta do sistema alimentar dominante: as carnes ocupam bastante espaço. Em nenhum trecho se contesta o tamanho da demanda atual (e crescente), nem o papel que corporações do setor tiveram em alavancar o consumo per capita. 

Em resumo, “o chamado ‘efeito poupa-terra acumulado’ chega a 397 milhões de hectares, área que teria sido necessária para sustentar os níveis atuais de produção caso a produtividade tivesse permanecido nos patamares de 1990 — o equivalente a aproximadamente 2,5 vezes a área atual de pastagens do país”.

Mesmo que o agro “poupasse terra” em espaço, o que não se sustenta, ainda assim não poupa a saúde da terra. Um estudo recente do Instituto Escolhas aponta para o excessivo e crescente uso de fertilizantes nas produções agrícolas de larga escala, como é o caso da soja, cujo principal exportador global é o Brasil, desde 2019. 

“O resultado dessa trajetória de transformações é notável. Nas últimas três décadas, a produção de grãos no Brasil cresceu 494,8%, passando de 58 para 345 milhões de toneladas, enquanto a área cultivada aumentou 115,8%, de 38 para 82 milhões de hectares, considerando área plantada que contempla primeiras, segundas e terceiras safras, a depender do produto. Esse avanço reflete os expressivos ganhos de produtividade, que permitiram uma “poupança de área” estimada em 144 milhões de hectares — o equivalente a 1,8 vezes a atual área cultivada com grãos.”

O país utiliza cada vez mais fósforo e potássio no solo, tendo ampliado o uso dessas substâncias em 299% em trinta anos (1993-2022), mas a produção cresceu muito abaixo disso: 64%. Só na produção de soja para alimentar suínos e frangos em outros países, o Brasil já despejou mais de seis milhões de toneladas de fertilizantes no mesmo período, substâncias químicas concentradas que vão parar nos rios que abastecem populações tradicionais no campo, mas também urbanas, nos grandes centros. 

Em termos de sustentabilidade, o documento ainda dá como completa uma transição que nem sequer chegou ao berço. Basicamente, as organizações exageram o alcance de iniciativas que são embrionárias no setor, e cujos resultados são incertos.

“Atualmente, o setor agrícola brasileiro vive uma nova transformação, impulsionada pela adoção de tecnologias e práticas regenerativas que combinam sistemas agroflorestais e sistemas integrados de produção de alimentos e energia. Mais do que ampliar a produtividade, essa transição busca restaurar a saúde dos solos, conservar a biodiversidade e fortalecer a resiliência dos sistemas produtivos, tornando-os capazes de operar com baixas ou neutras emissões de carbono e, em muitos casos, remover mais carbono da atmosfera do que emitem.”O Fórum de Agricultura Tropical não ouviu a ciência para proferir tais afirmações. Atualmente, não existe um consenso científico de protocolo para gestão de pastagens e lavouras que assegure a eficiência e mensure a quantidade de emissões evitadas no solo pelas “práticas regenerativas”. Estes projetos precisam de acompanhamento detalhado de certificadoras e proponentes de projetos, o que só poderia ocorrer se houvesse uma rígida fiscalização do manejo do solo in loco por agentes privados ou públicos independentes — e não por empresas pagas para emitir segundas opiniões.  

O texto também defende que práticas de agricultura e pecuária regenerativa representam a vanguarda da ação climática no setor agroalimentar. “Esse novo paradigma combina sustentabilidade ambiental, rentabilidade econômica e resiliência climática, formando um dos eixos centrais da transição para uma agricultura tropical sustentável.” No entanto, considerando que o agro é responsável por quase 75% das emissões de gases de efeito estufa, como é possível ser “vanguarda da ação climática” sem se discutir uma redução de rebanho? Como é possível ser vanguarda considerando que há uma previsão de aumento do rebanho de bois? 

O documento aponta, ainda, “que o financiamento climático consolidou-se como o principal gargalo histórico das negociações e como o habilitador decisivo da implementação das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) do Acordo de Paris. A COP30, em Belém, representa a oportunidade de transformar essa barreira em uma ponte efetiva para a ação.”

E afirma que “a experiência nacional com agricultura de baixo carbono, bioeconomia e matriz energética renovável comprova que a sustentabilidade pode ser vetor de competitividade e prosperidade”.

Por um pouquinho mais de ouro

Um documento sobre o agro obviamente não deixaria de fora o pedido por mais e mais dinheiro. E defende que mecanismos de mercado são fundamentais para atrair investimentos privados. Nesse sentido, bioeconomia e mercados de carbono “convertem ações de mitigação e uso sustentável dos recursos naturais em valor econômico mensurável e criam incentivos econômicos diretos para a descarbonização”. Porém, reportagens do Joio e de diversos veículos de comunicação mostraram como os mercados de carbono usam de estratégias de greenwashing e de proibição dos modos de vida tradicionais.

No âmbito do financiamento climático, o documento ainda sugere o uso de instrumentos do mercado de capitais para viabilizar o “agronegócio sustentável”. Títulos verdes são indicados como fonte de recursos com “benefícios ambientais comprovados”, mas, quando se analisa um título do agro de perto, os benefícios podem ser inexistentes, quando não diretamente maléficos ao meio ambiente e aos povos da floresta. É o caso de títulos verdes que levantam somas bilionárias para empresas colherem soja, milho e algodão de áreas protegidas, como terras indígenas e territórios de povos tradicionais. 

O documento ainda tenta ressuscitar um instrumento financeiro que não deslanchou nem mesmo entre o agronegócio e o mercado financeiro: a Cédula do Produto Rural Verde. Mesmo as CPRs que servem de lastro para a emissão dos títulos verdes, isto é, operações que deveriam justificar e garantir, financeira e ambientalmente falando, a emissão do título, estão longes de ser sustentáveis. Investigações comprovam que a falta de regulação e fiscalização desses instrumentos permite que o agro se beneficie duas vezes deles: pelo greenwashing, ao utilizarem do discurso verde para a captação de créditos, e pela não necessidade de explicar suas operações aos credores, já que o mercado não exige garantias ambientais nem antes nem depois de viabilizar o recurso. 

A pauta recente mais repetitiva da FPA, grupo político que distribui o documento, não foi esquecida dele. O pedido de ampliação do Seguro Rural para produtores agrícolas tem como uma das justificativas o aumento dos eventos extremos climáticos que, esqueceram de dizer, são majoritariamente causados pela mudança de uso da terra. Logo, Rodrigues advoga por uma maior cobertura do seguro — um subsídio estatal, com juros subsidiados —, para que o agronegócio tenha a garantia de que as somas investidas em sua produção sejam ressarcidas em caso de granizo, chuvas extremas ou secas prolongadas. Ora, a recuperação de nascentes, Áreas de Preservação Permanente e de Reservas Legais que encontramos destruídas nas propriedades privadas do país não são mencionadas como ações para reduzir os efeitos do clima. Quando esses instrumentos legais de proteção são citados no texto, é para elogiar o Código Florestal escrito e votado por ruralistas em 2012, lei que afrouxou a proteção socioambiental no país e que desprotege áreas sensíveis para o clima e cobiçadas pelo agro, como o Cerrado.

Esta reportagem foi produzida por O Joio e O Trigo, por meio da Cobertura Colaborativa Socioambiental da COP 30. Leia a reportagem original em: Documento do agro para a COP 30 ignora saúde humana e desmatamento

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