O país enfrenta impactos extremos e pressões crescentes que transformam a defesa ambiental em tema urgente de justiça
Autor: Aldem Bourscheit
O Brasil e o mundo passam por um momento crítico com enchentes, secas e outros eventos climáticos extremos, avanço do desmatamento, desigualdades sociais e uma engrenagem econômica que pressionam cada vez mais as instituições responsáveis por proteger o meio ambiente.
Diante deste cenário, representantes de Ministérios Públicos (MPs) – que defendem a aplicação da lei acionando a justiça, se necessário – do país todo reconhecem que a crise climática deixou de ser uma projeção distante para se tornar tema cotidiano de inquéritos, ações civis públicas e operações criminais.
Em paralelo a essa tendência, ganha força a chamada litigância climática, que passa a disputar na Justiça sobre quem deve responder e pagar pelos impactos socioambientais de uma crise climática já inegavelmente sentida em todo o território brasileiro.
“O futuro já chegou”, destacou José Pires dos Santos, promotor de Justiça no MP/PA. “E as projeções são de que a situação tende a piorar”.
Um sinal da mudança de atuação dos MPs veio ontem (17), quando a Justiça decidiu que a variável climática deve ser integrada ao licenciamento ambiental no Distrito Federal (DF). A ação foi movida pelo MPDFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios).
“É uma resposta necessária frente aos efeitos cada vez mais severos da crise climática, que já impactam a saúde da população, a segurança hídrica e alimentar, a biodiversidade e o bem-estar das gerações atuais e futuras”, disse o promotor de Justiça Roberto Carlos Batista.
Outro divisor de águas foi uma ação civil pública por desmate numa reserva extrativista na Amazônia. Além dos pedidos usuais para recuperação da área, indenização por danos materiais, morais e ambientais –, os autores incluíram um item de “dano climático”.
Para isso, estimaram quanto CO₂ foi emitido pela derrubada e queimadas com uma calculadora do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e calcularam o acréscimo à compensação a partir de parâmetros do Fundo Amazônia.
“Foi um passo importante para consolidar precedentes que reconheçam o dano climático como dimensão da reparação ambiental”, disse Luciano Furtado Loubet, presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa).
Já no Rio Grande do Sul, a maior enchente já registrada no país – ano passado – escancarou fragilidades como estruturas de proteção mal mantidas, ausência de planos de contingência efetivos, falhas de comunicação e uma percepção de risco ainda baixa entre autoridades e população.
Em meio ao caos, o Ministério Público gaúcho criou um gabinete para integrar áreas internas que atuavam separadamente e garantir respostas mais rápidas e coordenadas à crise. A partir disso, foram produzidas orientações técnicas, capacitadas defesas civis e cobradas medidas estruturantes de prevenção.
“O estado será palco de novos desastres”, lembrou Sílvia Capelli, promotora de Justiça no MP/RS. “Precisamos qualificar as políticas públicas para atender a esses eventos extremos”.
A milhares de quilômetros ao norte dali, na Amazônia, a seca potente e o fogo transformaram Rondônia num dos estados com pior qualidade do ar do país, também em 2024. Comunidades inteiras ficaram sem água potável, rios foram a níveis baixos recordes e incêndios adentraram até em áreas protegidas.
Para encarar a tragédia, órgãos ambientais, bombeiros, polícias e MP coordenam ações rápidas até por grupos de mensagens para seguir frentes de fogo que mudavam a todo momento. O trabalho reduziu em 90% os focos de calor no estado, disse Valéria Canestrini, promotora de Justiça do MP/RO.
“A crise demandou mudanças na atuação até interinstitucional, de maneira a fortalecer as frentes preventiva e penal”, ressaltou.
Mas as chamas e a derrubada da floresta não são os únicos sintomas de que a Amazônia é palco de grandes disputas. Promotores e procuradores contam que organizações criminosas reforçaram a economia ilegal da região – baseada em madeira, garimpo de ouro e tráfico de drogas.
Estradas e pistas de pouso clandestinas e rotas fluviais controladas pelas facções se somam, segundo as fontes, à atuação histórica de elites econômicas sobre terras públicas. “O ilícito ambiental é quase sempre um ilícito econômico”, resumiu Loubet. “A criminalidade tem uma velocidade que é a velocidade econômica”.
No Pará, a promotora agrária Herena de Melo ressaltou a conexão direta entre terra, floresta e clima. “Nós só vamos, de fato, salvar a Amazônia se acabarmos com a degradação de terras. A questão fundiária hoje é o ponto nodal de toda essa crise climática”.
Enquanto isso, em estados como Bahia e Mato Grosso do Sul, os MPs apostam em tecnologia moderna e dados para tentar reduzir a distância entre o ritmo acelerado da criminalidade e as respostas judiciais e dos órgãos públicos.
Na Bahia, mais de 36 mil alertas de desmatamento expuseram o limite do modelo tradicional de fiscalização, apoiado em equipes reduzidas e ações pontuais. Com apenas 2,5% dos Cadastros Ambientais Rurais validados, o estado corria o risco de comprometer sua própria competitividade agrícola.
O projeto Terra Protegida foi criado para enfrentar esse passivo, com geotecnologia, automação e inteligência artificial que permitiram a produção de milhares de relatórios com provas de ilícitos, que, posteriormente, ajudaram a balizar políticas e ações civis públicas.
Em Mato Grosso do Sul, o monitoramento sistemático do desmate – antes feito só pelo órgão ambiental – passou a contar com forte apoio do MP, que usa imagens de satélite e cruza dados para identificar a supressão ilegal de vegetação em prazos cada vez mais curtos.
Os MPs também querem alterar a lógica econômica que sustenta a destruição ambiental. Um exemplo é o TAC da Carne, que desde 2009 responsabiliza frigoríficos por comprar gado de áreas desmatadas ilegalmente.
Ao exigir que empresas verifiquem registros das propriedades de origem dos animais, o acordo enfraqueceu a engrenagem que movia desmatamento, engorda de gado e exportação. Com o tempo, surgiram artifícios para driblar as exigências, como o recorte fraudulento de CARs e a triangulação de rebanhos.
Mesmo assim, promotores defendem que a estratégia de atacar a cadeia produtiva permanece fundamental. “Em vez de focar só no transporte de madeira, é preciso entender a lógica que leva àquele caminhão carregado. Porque senão todo dia vai ter um caminhão novo na estrada”, comparou o procurador Ricardo Negrini.
Ainda assim, o consenso entre membros do Ministério Público é que só a repressão clássica não dá conta da dimensão dos problemas gerados pela crise do clima e desmatamento.
Penas baixas, multas que demoram anos para serem cobradas e frequentemente não são pagas, além de processos que consomem enormes recursos para punir “laranjas”, acabam disseminando impunidades. “O pior que pode acontecer é a pessoa pagar apenas uma cesta básica”, resume Loubet.
Por isso, cresce a defesa de uma atuação mais seletiva e estruturante, que combine litigância climática, ações civis de grande impacto e operações criminais que integrem lavagem de dinheiro, organização criminosa e outros delitos não ambientais.
Nesse sentido, há dois anos o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) recomendou que os MPs do país priorizem atuações “estruturais e resolutivas”, tentando justamente sair da lógica de apagar incêndios pontuais para atacar as grandes estruturas causadoras de danos socioambientais.
Enquanto isso, o Brasil chegou à COP30 com compromissos ambiciosos, como cortar até 67% das emissões até 2035, mesmo que a quase totalidade dessa poluição venha do desmate, ainda fortemente ilegal e descontrolado, especialmente fora da Amazônia. Isso colocaria o país numa situação paradoxalmente favorável.
“Combater o crime, prender grileiros, ajuda o Brasil a cumprir as metas do Acordo de Paris”, ressaltou André Guimarães, diretor-executivo do Ipam. “A gente ganha duas vezes: beneficia o clima e ainda se livra de criminosos, criando um bom ambiente de negócios para atrair investimentos”.
Na mesma linha, o engenheiro agrônomo reforça que, sem floresta tropical – em especial, sem a Amazônia – não haverá estabilidade climática nem segurança alimentar.
“A floresta não produz água, mas a distribui, garantindo a regularidade das chuvas que sustentam a agricultura de boa parte da América do Sul. Sem a Amazônia, não existe nenhuma chance de atingirmos os objetivos do Acordo de Paris”, afirmou.
É diante de encruzilhadas como essa que a atuação dos MPs precisa ganhar densidade, pois os desafios já não são apenas ambientais, jurídicos ou econômicos. São, cada vez mais, um teste sobre que projeto de futuro o país será capaz ou não de construir.
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Esta reportagem foi produzida por ((o))eco, por meio da Cobertura Colaborativa Socioambiental da COP 30. Leia a reportagem original em: https://oeco.org.br/reportagens/clima-em-crise-e-desmatamento-desafiam-atuacao-dos-mps-no-brasil/














